Uma vez na escola, quando eu era criança, a professora passou a seguinte atividade para fazermos em casa: escrever um poema da perspectiva de uma bola após uma partida de futebol.
Ontem à noite fiquei relembrando este episódio. Não lembro quantos anos eu tinha, evidentemente foi depois da alfabetização, mas antes do segundo seguimento do Ensino Fundamental.
Achei a atividade muito difícil. Não tinha familiaridade com futebol. Nem com bolas. E achava difícil - já nesta época - entender a situação da perspectiva de alguém que não fosse eu, principalmente sendo o outro um objeto inanimado.
No dia da leitura da atividade, na sala de aula, escutei uma coleguinha recitando o seu poema. Me lembro ainda o nome dela, era Amanda. Lembro da sua voz recitando, posso escutar ainda agora se me esforçar. A Amanda era chata, ela era a aluna que tirava as maiores notas, eu sentia que ela era a mais querida pela nossa professora, ela não parecia ter dificuldade em nada e até brincava muito no recreio, jogava com os garotos, voltava para a sala toda suada, com os cabelo lisos frisados e a testa molhada.
Gostaria de recordar todo o poema escrito por ela, mas me lembro do primeiro e do último versos. “A bola, coitada, leva uma vida sofrida”, começava assim. Depois da epopeia futebolística, na qual devia constar o sofrimento infligido à bola, que é obrigada a voar e rolar durante noventa minutos, sendo chutada de um lado para o outro, Amanda recitava: “e muitas vezes, pela torcida não é devolvida”.
Posso sentir agora mesmo a inveja que experimentei naquele dia. A primeira coisa que eu pensei foi “a Amanda não escreveu isso, foram os pais dela”. Amanda era filha única e seus pais eram mais velhos. Eu devo me lembrar disso porque os meus pais sempre foram escandalosamente mais jovens do que todos os pais dos coleguinhas da escola. Como Amanda não tinha irmãos, seus pais podiam dedicar a ela todo o tempo livre que tinham, enquanto os meus precisavam se dividir entre três filhos e o partido comunista e as passeatas e a família excessivamente próxima.
Uma vaga lembrança me veio. Talvez eu tivesse pedido ajuda para os meus pais na tarefa do poema da bola. Meus pais não são o tipo de pais que fariam o trabalho da escola no meu lugar, mas me auxiliariam, me mostrando um caminho mais iluminado para não sofrer tanto com o dever de casa.
Tenho certeza, meus pais não escreveram o poema em meu lugar.
Entretanto, não tenho certeza de que a Amanda tenha escrito, ela mesma, aquela bela poesia, não sei se ela seria capaz de ser uma bola por algumas horas e escrever aqueles versos sobre o sofrimento dos chutes e sobre a falta de consentimento para ser arremessada e maltratada.
A Amanda já tinha muitas coisas, era ótima em matemática, era querida por toda a turma e pelas professoras, brincava, estudava, não se atrasava para a aula, nunca faltava à escola, ela não poderia ter também tamanha criatividade. Escrever aqueles versos aos dez anos de idade. Não seria justo.
De qualquer forma, da minha perspectiva, a bola não sofre durante a partida de futebol. Me lembro de na tentativa de escrever aquele poema, imaginar a bola feliz, cumprindo a sua função de bola, ser jogava, chutada e arremessada num campo gramado, ouvindo gritos e xingamentos de homens ensandecidos. A bola não é infeliz. Na verdade, quase ninguém é infeliz num jogo de futebol, exceto a torcida do time perdedor e o juiz.
Anos depois encontrei a Amanda, já éramos mais velhas e ela não tinha nenhuma pinta de quem escrevia poemas. Também já era a mais querida da turma e das professoras, nem suava tanto na hora do recreio. Depois descobri, ela foi cuidar de bichos, virou veterinária e, mais tarde, envolvida no submundo da internet, passou a ganhar dinheiro publicando fotos e vídeos vestindo fantasias de desenhos japoneses, num estilo otaku.
Nunca mais nos vimos.
Talvez ela tivesse sido uma grande poeta. Como não foi, tenho mais certeza de que foram os seus pais que escreveram aquele poema.
Eu também não virei poeta, mas nunca tive vocação.
Não me recordo do meu poema sobre a bola, será mesmo que eu escrevi?