Me apaixono todo dia,
escrevo cartas horríveis, cheias de espasmos,
como se tivesse um piano e olheiras,
como se me chamasse Ana da Cruz.
Fora os olhos dos retratos,
ninguém sabe o que é a morte.
Sem os trevos no jardim,
não sei se escreveria esta escritura,
ninguém sabe o que é um dom.Trecho do poema Paixão, de Adélia Prado
ao qual faço referência ao longo desse texto
Eu pensei em escrever um texto sobre a minha tia, já que no último dia 25 foi o seu aniversário. Nós não comemoramos mais essa data, porque ela não faz mais aniversário e é estranho esse nosso costume. Quando a pessoa morre nós continuamos a nos lembrar dela, especialmente no dia do seu nascimento e no dia da sua morte - dois aniversário que ficam tristes, para sempre tristes, e jamais celebrados.
Depois eu desisti de escrever aquele texto. Tem sido difícil escrever. Primeiro porque agora eu faço uma coisa que impossibilita que a minha agenda se divida em outras atividades: eu estudo, depois eu estudo e quando sobre um tempo livre, eu estudo. Tento encontrar brechas para lavar os cabelos. Mas também tem sido difícil escrever porque o meu exercício da crítica tem sido mais duro do que de costume. Penso em escrever e antes de abrir o computador, digo para mim mesma: “quem quer ler isso? Tanta besteira”. Então eu desisto.
Mas ontem à noite descobri que além disso, tem outra coisa. Com todo o tempo dedicado ao estudo eu não consigo ler literatura como eu preciso e gosto. Na última semana comecei a ler um livro. Li as primeiras páginas na terça-feira e só consegui abri-lo novamente no sábado, o que me faz ser, invariavelmente, um pouco mais triste. Mas o livro escolhido é um livro mágico. Tenho certeza que algumas de vocês concordam comigo. Nunca fui uma excelente leitora de Clarice Lispector, assumo que tenho dificuldades e que eu não entendo muito. Entretanto, A paixão segundo G.H. é o candidato a um dos melhores livros que eu já li e eu ainda não cheguei na metade.
[…] a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.
Eu poderia não escrever mais nada depois disso, mas esse pedaço de frase me fez lembrar que escrever é sempre o que eu preciso fazer e, por isso mesmo, às vezes é muito difícil.
Tentar nunca me esquecer que eu combinei com o mundo de ser uma escritora, não uma grande escritora (frase roubada de autor desconhecido).
Então foi aniversário da minha tia no último dia 25. Também é aniversário da Revolução dos Cravos. Também é o aniversário do ex-namorado de uma amiga. Enfim, foi um dia normal, sempre será um dia normal. Mas para fim é o aniversário da minha tia e, se eu não me engano, ela faria 40 anos de idade. Ela morreu aos 33 de causa desconhecida. Nunca saberemos o que levou seu coração a parar na véspera do dia dos namorados, mas o meu bisavô - no caso, avô da minha tia a quem ele se referia como “Margarida” - morreu 15 anos antes, no dia dos namorados.
Você pode pensar que é horrível morrer jovem e eu concordo. Mas ao longo desses sete anos eu inventei várias lógicas para que a morte da minha tia fizesse algum sentido. Infelizmente não foi incutido em mim o dom da fé. Digo infelizmente porque não saber é melhor do que saber e seria muito mais fácil se eu acreditasse no paraíso ou na reencarnação ou no Valhala. Mas comigo foi assim, a morte me tirou a poesia e de vez em quando eu olho pedra e vejo pedra mesmo1.
Quando minha tia morreu foi a primeira vez que experimentei a não-existência. Eu já havia perdido cãezinhos e foi triste, mas não foi a mesma coisa. Agora e talvez para toda a minha vida eu queira apagar da minha memória aquela sensação de falta de ar quando meu pai me disse sem dizer uma palavra que ela havia morrido. Gostaria de nunca mais me lembrar das horas daquela madrugada eterna, das pessoas subindo a ladeira, do rosto do meu avô, da minha avó que não conseguia emitir uma palavra. Eu queria para sempre me esquecer de ter recebido a notícia de que alguém, sem dar notícia ou aviso prévio, simplesmente parou de existir. Talvez aquela minha falta de ar inicial fosse uma pequena demonstração do que é o vazio.
Nos meses que se seguiram era estranho acordar pela manhã e me lembrar que a minha tia não estaria ali. Era a sensação de um descompromisso, de um não-acontecimento, de um anti-encontro. Nada aconteceria porque ela não existia mais. Eu tinha 19 anos, estava no segundo ano da faculdade de Direito e durante algum tempo tudo parou de fazer sentido.
Quando eu nasci, minha mãe era adolescente, ela morava com os meus avós e suas duas irmãs. A Bia, minha tia em questão, tinha 13 anos. Se eu não tivesse um irmão mais velha, seria ela a cumprir esse papel. Como eu tinha um irmão mais velho - de quem ela foi, sem dúvida, a tia e irmã mais velha - ela foi a minha tia e a minha outra mãe. Com ela eu passei grande parte das horas da minha infância, seja na casa dos meus avós, onde eu morei por alguns anos, seja na casa dos meus pais, onde ela morou de forma intermitente. Ela e minha mãe muito amigas. Minha mãe era sua irmã mais velha e minha tia era seu HD externo - uma piada que minha mãe fez uma vez. Elas estavam sempre juntas e muitas vezes eram confundidas na rua.
Minha tia foi, durante 33 anos, uma criança. Além de uma tia, uma tia fora de série - tenho certeza, era esse o seu dom. Não há tia no mundo como a minha tia - e eu sei que muitas sobrinhas dizem isso, mas você não poderá jamais me contradizer, afinal, não conheceu a minha tia. A rainha dos brigadeiros numa tarde quarta-feira. Mestra em escorregar no colchão pelas escadas da casa dos meus avós. Uma grande pagodeira. Tenho certeza de que se dependesse dela, teria tido cabelos vermelhos desde os três anos de idade. Excelente em ter a ideia de fazer um churrasco aleatório numa segunda-feira à noite. Fã de Claudinho e Bochecha e de Jeito Moleque. Ótima em brigas homéricas - digna de uma típica família italiana - começava com gritos, terminava em lágrimas. Ninguém no mundo é capaz de sair de pijama pela rua como ela era - me diz aí, você teria coragem de buscar criança na escola com pijama manchado de água sanitária? A minha tia tinha. E essa mesma pessoa passava chapinha no cabelo e batom cor-de-rosa na boca para sair no fim de semana. Multifacetada e, sobretudo, divertida. Minha tia gostava de bebês e de crianças, brigava com elas na mesma proporção que as cuidava.
Eu e minha tia, talvez no ano de 1999 ou 2000.
Depois que ela morreu eu sinto que tudo ficou um pouco mais triste. Mas, é claro, voltei a viver, voltei a ser feliz, voltei a dar risada. Em algum momento eu parei de pensar que ela não existia a cada manhã que eu acordava. A vida sempre acontece.
Durante um tempo - longo, eu diria - fiz apostas mentais comigo mesma, o prêmio sempre era a minha tia voltar a existir: “se eu comer um quilo de cenoura, minha tia não vai mais estar morta.” Coisas desse tipo. Recentemente eu descobri que esse é um dos estágios do luto: a barganha (posso estar falando a maior besteira agora, me desculpem). Evidentemente, não importaram as minha apostas, a minha tia continuou morta e assim sempre será. Hoje tenho certeza de que nenhum pedaço de mim morreu com ela. Muito pelo contrário. Me sinto mais viva porque aprendi jovem o que é a brevidade da nossa existência. Não que isso seja um conhecimento muito prático, mas é bom saber que existem dores muito profundas e, sobretudo, é importante olhar a vulnerabilidade das pessoas que nós amamos quando elas perdem alguém. Eu perdi a minha tia, a minha mãe perdeu a irmã, meus avós perderam a filha, minha prima perdeu a mãe. Existe uma solidariedade e uma empatia que, eu tenho certeza, só nascem de um sofrimento assim tão grande.
De qualquer forma, no último dia 25 de abril, foi aniversário da minha tia. Se ela estivesse viva teríamos tido uma festa no fim de semana, não tenho dúvidas. Dessa vez, porém, não fiquei triste como nos outros aniversários seus. Mas acordei com saudade dela. Aliás, a saudade é uma coisa engraçada. De repente ela vem e hoje eu sei que é uma saudade bonita de sentir. Em algum momento eu ficava muito triste porque junto da saudade vinha a consciência de que ela não existirá nunca mais, então a gente não vai mais se ver, ela não conhecerá meus filhos, ela não me visitará na cidade onde eu moro hoje e eu não a verei velhinha. Mas se não passou, esse sentimento se arrefeceu. Hoje sinto saudades da minha tia. E só. Lembro da sua gargalhada, dos seus cabelos vermelhos, do som da sua voz, da alegria única que ela sempre despertará em mim. Fico feliz ao lembrar dela. Claro, dou uma choradinha, porque faz bem à saúde.
No dia 25 eu fiquei sem coragem para escrever. Inventei a mesma desculpa que tenho inventado nas últimas semanas. Mas a Clarice Lispector me vez abrir o computador e fazer o que eu tinha que fazer:
Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde - quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é o sentido. Tomo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias. A falta de sentido só iria me assaltar mais tarde. Tomar consciência da falta de um sentido teria sido sempre o meu modo negativo de sentir o sentido? fora a minha participação.